CAROS COLEGAS, ESSE TEXTO DEVE SER O NOSSO GRITO DE ALERTA DE S.O.S. À SAÚDE MENTAL BRASILEIRA, UM CONVITE À REFLEXÃO, Rafael Marmo
Caros colegas do campo da Saúde Mental
Diante do cenário preocupante das últimas     notícias sobre os movimentos  ativos de setores retrógrados do campo da saúde     mental e da repercussão de  suas ações na esfera do poder público (Ministério     da Saúde), dos descalabros  na esfera das estratégias de "combate"     às drogas que vem sendo colocadas em  prática no Rio de Janeiro, como a     internação compulsória de jovens usuários  de crack em situação de rua,     determinada pelo Secretário de Assistência  Social (ex-Ordem Pública e Choque     de Ordem) e que serão logo copiadas por  outros grandes estados     brasileiros, senão pelo próprio (Estado brasileiro),  e do quadro não menos     grave que as próprias políticas públicas e sua  regência por posições tomadas     a partir do próprio "executivo federal",  titular do dito Estado, a nossa     Presidenta da República, vem tomando, decidi  sair do silêncio em que vinha     me mantendo e procurar o diálogo com meus  colegas de campo. Desculpem o     longo texto, mas como só o lerá quem desejar  fazê-lo, tá tudo OK,     certo?
Penso que é preciso ter muito cuidado quando,     no atual cenário  político-social brasileiro, fala-se em "rever a política de     saúde mental" ou  mesmo "avaliar os serviços" (leia-se, os CAPS), "melhorar     sua eficîência" e  outras "providências". Quem levantaria uma voz     crítica contra iniciativas  como esta da gestão pública da saúde, ou que     lhe são sugeridas por setores  da sociedade "interessados no bem comum e nos     direitos sociais dos cidadãos,  entre eles o direito à saúde pública e     de qualidade"? À primeira vista,  avaliar os serviços, melhorar sua qualidade     e até mesmo rever as suas formas  de funcionamento é o que de maior     probidade teria o poder público a fazer em  sua tarefa maior     de garantir à população o direito às práticas mais  eficientes     e qualificadas de saúde e de saúde mental.
No entanto,  essas iniciativas não são     produzidas sob a égide dos motivos  que declaram. O discurso que se pauta por     um aparente tecnicismo,  eficientismo, estabelecimento de metas, qualidade,     produtividade,  rentabilidade, otimização e outros tristes termos do     vocabulário  tecno-burocrático que é prioritariamente proferido nas esferas da     gestão  pública "moderna" esconde, na verdade, os seus verdadeiros     motivos.
O processo de reestruturação da assistência     psiquiátrica no Brasil é  indissociável dos eixos histórico-políticos     que atravessam e constituem o  tecido da social brasileiro ao longo de     muitas décadas de nossa História.  A  reorientação do modelo de     assistência, a substituição das práticas  manicomiais e     hospitalocêntricas pelas práticas territoriais e comunitárias  (que não     exclui o recurso à internação mas o submete a uma lógica de  monitoramento     que não faz da internação o centro de gravidade das  práticas     clínico-assistenciais), a pluralização de discursos, saberes e  práticas para     além da psiquiatria estritamente medicalizante, a  multiprofissionalização na     composição de equipes, sem prejuízo de nenhuma  das profissões que passaram a     integrar o amplo espectro técnico em saúde  mental, a exigência de que a     direção política, técnica, gestora e o modo de  conceber e contratar os     recursos humanos - o mais importante recurso  tecnológico do campo - sejam     públicas e não privatizadas, terceirizadas ou  parceirizadas com setores     privados da sociedade, a recusa dos especialismos,  enfim, tudo isso     compõe o complexo campo da atenção psicossocial (que por  isso mesmo     não é constituída de "serviços especializados" nem se define  pelo     caráter "primário" ou "não-primário" da atenção que presta, mas      especifica-se por ser atenção psicossocial). 
Este campo, mais do que um mero novo     modelo técnico de assistência em  saúde mental, consiste     em uma resposta político-social e assistencial a um  longo, insidioso e     nocivo processo de desassistência, reclusão e exclusão  institucional não     apenas dos loucos, mas também dos mais diversos quadros  de     vulnerabilidade, desproteção e risco social com graves conseqüências      psíquicas, como o abuso de álcool e drogas em diversas faixas etárias,      particularmente em crianças e adolescentes, exposição às mais variadas      formas de violência, risco letal, etc. Como resposta a este quadro de      produção ativa de desassistência e despreteção social à     mais numerosa faixa  da população brasileira, cuja estatura não é     frágil, porquanto resulta de um  longo processo histórico que lhe rende     robustas raízes, o campo da atenção  psicossocial visa revertê-lo. E vem     conseguindo fazer isso, ainda que com o  escandaloso declínio do investimento     público em sua rede, a que vimos  assistindo nos últimos tempos.     A eficácia do campo da atenção psicossocial  pode ser verificada nos     efeitos produzidos na população e nas comunidades  territoriais onde os CAPS     implantados têm efetivo apoio público e conseguem,  com isso, ordemar uma     rede de assistência eficaz intra e intersetorial, de  equipamentos de saúde e     de outros setores estratégicos do campo. Há  significativa redução de     internação nesses territórios, diferentes formas de  sustentação de     laços sociais antes impensáveis entre os usuários, elevação  do nível de     entendimento de inclusão nas comunidades em que vivem (efeitos  nos     não-usuários mas em seus parceiros sociais), entre outros  indicadores,     inclusive epidemiológicos.
Não é à toa que a IV Conferência  Nacional de     Saúde Mental-Intersetorial, realizada em julho de 2010 em  Brasília,     reafirmou, quase que em sua integralidade, os princípios e ações  do     campo da atenção psicossocial, ainda que alguns gestores e setores      operantes neste campo prefiram não levar isso em conta.
Por isso, trazer a questão da eficiência da     rede de atenção psicossocial,  dos CAPS, é prática que só se pode legitimar a     partir do interior de uma  posição política que se paute por essas diretrizes     e concepções. Apontar  ineficiência, propor avaliação dos CAPS, dicutir o     nível de qualificação das  equipes, etc. é o que de melhor teríamos a fazer,     se essas propostas não  fossem formuladas de forma inteiramente alheia e até     mesmo francamente  antagônica aos eixos constitutivos do próprio campo e     ao processo  histórico-político que lhe deu existência. Qualquer tentação ou     tentativa de  avaliar a rede de atenção psicossocial à luz de um mero     tecnicismo  cientificista e pseudo-eficiente fracassa porque:
1) concebe eficiência fora dos     parâmetros metodológicos em que esta  categoria seria aplicável aos     serviços que pretende avaliar; e 
2) produz um tipo de eficiência que,     embora pretensamente pautada no que  se chama "evidência científica",     despreza o mais rasteiro nível de realismo  (dos erros em matéria de ciência,     o mais grave) quanto à experiência mesma  de afecção mental e     sofrimento psíquico dos indivíduos cujo tratamento é  investigado em sua     eficiência, limitando-se às infindáveis descrições de  "transtornos" do DSM     IV, aparentemente objetivas e fidedignas mas  inteiramente desprovidas de     lógica, etiologia e conceituação teórica, o que  consequentemente as     faz mergulharem no mais obscurantista abstracionismo  especulativo (do     tipo: "uma criança que porventura não tiver sido tratada  com     ritalina de seu suposto TDA/H na     infância será provavelmente um  usuário contumaz     de drogas na adolescência" - se não droga antes, droga  depois -, sem     que, em nenhum momento, a realidade clínica, apreensível pela  mais simples     anamnese, seja levada em conta).
Mas na verdade o fracasso da empreitada se vê     facilmente recuperado no  plano político: o real objetivo nunca foi, em     nenhum momento de seu trajeto,  o de avaliar seriamente o campo da atenção     psicossocial e suas questões,  dificuldades e falhas, mas o de derrubá-lo,     a priori, porque ele produziu  uma realidade social e     institucional concreta que deixou de atender aos  interesses econômicos     (de financiamento público da malha de leitos e  hospitais psiquiátricos, e da     indústria farmacológica), políticos (de uma  recuperação da hegemonia médica     em matéria de saúde mental, hegemonia  perdida pela pluralização de práticas,     saberes e profissões) e  pseudo-científicos e acadêmicos (relativos aos     paradigmas que passaram a  dominar o campo da medicina do comportamento,     cópula  "científico"-capitalista - o primeiro termo entre aspas pelo respeito     que  devemos à austera dama da Ciência que não é esta, impostora e sustentada      pela hegemonia de mercado, que se apresenta no campo do comportamento     humano  na contemporaneidade).
Na verdade, os médicos, os psiquiatras, são     de fundamental importância no  sucesso do campo de atenção psicossocial, que,     a meu ver, não existe nem é  viável sem eles. Eles se dizem, no entanto,     excluídos, desrespeitados,  desprestigiados, e abandonam, corporativa e     coletivamente, este campo que  "não os reconhece nem respeita". Será? Ou     será, pelo contrário, por saberem  muito bem que teriam um enorme papel a     desempenhar, decisivo mesmo, neste  campo, que eles o abandonam, para     inviabilizá-lo, já que, no paradigma atual  que rege sua formação, os modelos     a que aderem são outros, privatizantes,  organicistas, medicalizantes,     neurocientíficos, comportamentalistas? Onde  estão os psiquiatras clínicos     que gostavam mesmo de adentrar a experiência  fenomenológica dos "doentes     mentais"? Onde estão os psiquiatras sociais, os  psiquiatras marxistas, os     psiquiatras críticos? 
Assistimos a um preocupante crescimento de um     de ovo da serpente, que  toma corpo na terrorificação das     drogas, sobretudo do crack, visto como o  próprio demônio em forma de     pedrinhas de fumaça que em pouco tempo  exterminarão os jovens na rua     além dos cidadãos que esses jovens  exterminarão como conseqüència do uso de     crack. E cresce o ovo: o pensamento  higienista, condenatório,     excluidor, que por má-fé identifica tratar com  fazer desaparecer do cenário     público e urbano, da rua, aqueles de quem  supostamente se quer tratar ,     internando-os em "casas", abrigos, comunidades  terapêuticas ou hospitais     "especializados" para que esses jovens sejam  "eficientemente cuidados até     que parem de usar drogas" (!). A Justiça, até  mesmo as Promotorias de     Infância, acabam por considerar essas medidas  adequadas, ou "adequáveis". O     secretário municipal de Assistência Social do  RJ é um dos arautos da     idéia e da portaria que institui a internação  compulsória de jovens em     situação de rua e uso de crack. A população, grande  parte dela, apóia, como     apóia tudo que os políticos que "limpam" as cidades  inventam. O Rio de     Janeiro continuará mais lindo do que nunca, agora com  menos pivetes     cheirando crack em copinhos de guara-vita nas esquinas e  cracolândias     generalizadas, preparado para a copa do mundo, os jogos  olímpicos.     Despoluído. Todo mundo celebra: o Rio em ascensão, depois de  ter     sido jogado na sarjeta do Brasil, agora é reerguido pelas mesmas      política e mídia que antes o afundaram. E a população agradece. Pela via das      drogas, os setores mais retrógrados encontraram a via de promover o      retrocesso político e assistencial pelo qual tanto ansiavam, há anos: a      remanicomialização da "assistência" em saúde mental! 
Mas será que podemos continuar acusando,     ingenua, pueril, cega e  neuroticamente, os "nossos adversários"? Não     estariam entre nós, ou mesmo em  nós, esses adversários? O campo da saúde     mental é coeso, é discursivamente  sustentado pelos princípios que declara?     Ou é estilhaçado, fragmentado, e em  muitos de seus fragmentos se compraz com     as OSs que o dominam, com a  tecnocratização que o corrói, com a guinada à     direita que o norteia? Basta  reunir um certo número de "colegas de campo"     que se evidenciará a mais  ruidosa polifonia de posições contrastantes:     alguns defenderão que a tônica  deve ser mesmo a atenção primária, os NASFs e     PSFs em detrimento (não em  conjugação) com a rede de atenção psicossocial,     os mesmos defenderão que  "CAPS é serviço especializado porque não é atenção     primária", outros  defenderão (por vezes ainda os mesmos) as OS como     garantindo maior  eficiência nos atendimentos. Outros dirão com aquele ar de     sabedoria  histórica que "os CAPS já cumpriram sua missão". E poucos ainda     restarão a  defender seriamente concursos públicos, investimento público em     recursos  humanos estáveis e comprometidos, bons salários (pagos pelo     Estado),  políticas públicas pautadas democraticamente em conferências     coletivas, rede  articulada e pública, serviços e equipes acompanhados por     supervisão  clínico-territorial, etc. etc. etc. - enfim, as boas práticas em     saúde  mental, aquelas que, maciçamente investidas pelo poder público e     assimiladas  pelo tecido social, dariam certo.
A pergunta que não quer calar é: por que esse     movimento anti-Reforma,  anti-campo da atenção psicossocial,     anti-territorial, encontra tantos  adeptos, é tão bem recebido por tantos     ouvidos, chega tão sem resistência a  tantos setores, até mesmo da gestão     pública? Por que a nossa Presidenta da  República, tão combativa, em sua     própria história pessoal, quanto às  questões sociais e políticas que     sempre assolaram o povo brasileiro, é tão  favorável a práticas     judicializantes e repressivas do uso de drogas, que sob  seu comando     direto pautam cada vez mais a política nacional anti-drogas da  SENAD,     que ela transferiu do gabinete institucional da Presîdência da  República     para o Ministério da Justiça, afastando-a mais ainda do Ministério  da Saúde,     onde deveria estar? Por que o próprio Ministério da Saúde é sempre  tão     receptivo a ouvir entidades como a ABP (Associação Brasileira de      Psiquiatria) se não desconhece que as posições desta entidade não são      apolíticas nem gozam da neutralidade "científica" que apregoam, enquanto que      enfraquece cada vez mais o campo da atenção psicossocial, que é de sua      própria alçada e criação? O que leva a Sra. Dilma Roussef a defender,     desde  seu discurso de posse, e de modo tão pressuroso, a parceria com     setores  privados, na própria saúde? O que leva a mesma presidenta a apoiar     as  comunidades terapêuticas (religiosas) como recurso para internação de     jovens  usuários de drogas, e paralela e simultâneamente desapoiar a política      nacional de tratamento do uso abusivo de drogas pautado na lógica da redução      de danos, do tratamento em comunidade (não a terapêutica, que exclui e      segrega o jovem, mas sua comunidade territorial), consultório de rua e      ampliação da rede de CAPS-AD?
Talvez seja hora de pararmos de acusar o      "outro" de "nosso movimento" e interrogar de que fios e eixos este movimento      vem se tecendo, para que tenhamos mais clareza do que queremos, se tanto é      que queremos algo que seja comum a um número significativo de nós, que possa       ter, hoje, o lugar de causa para algum movimento.
Abraços
Luciano Elia